segunda-feira, 4 de outubro de 2010

AGUARELAS AFRICANAS

EDMUNDO
Edmundo era incapaz de precisar quando aquela angústia se tinha apossado dele.
Poucos dias antes, numa tarde quente de verão, quando deixara a aldeia onde nascera, sentira-se feliz e uma sensação de alívio parecia ter-lhe enchido a alma.
A partida para ele fora uma libertação. Escorraçado pelo Pai que nem sequer lhe quisera emprestar o dinheiro para a viagem, deixou a velha casa onde nascera sem uma lágrima, apesar de sentir o coração apertado ao ver os olhitos espantados dos irmãos que o viam partir sem compreenderem o que se passava.
Agora, porém aquela angústia...
Seria porque quando desembarcou, viu só negros e nenhum branco à sua espera?...
Fora já há oito dias e aquela sensação peganhenta de angústia e abandono não mais o largara.
No Hotel onde se hospedara, tudo era estranho e quase irreal. Era uma construção em tijolo desnudado, pintado de amarelo-torrado rodeado de plantas que ele nunca vira.
A sala principal, ornada de máscaras indígenas, a que o branco dos muros dava um aspecto lúgubre, lembrara-lhe à chegada uma gravura pré-histórica que vira num livro quando ainda menino.
O quarto, com a cama ao meio envolvida por um mosquiteiro zebrado de manchas amarelas, uma mesa a um canto, um velho lavatório com um jarro amolgado a fazer-lhe companhia, avivava ainda mais a solidão que o invadia.
Os insectos atraídos pela luz, vinham esborrachar-se contra a lâmpada de petróleo e caíam depois no chão zumbindo. Enormes baratas passeavam pelo quarto e bichos desconhecidos, repelentes, surgiam de todos os lados. Já com a luz apagada ele sentia à sua volta esse mundo de bicharada que de vez em quando fazia estremecer a rede de tule...
Os ruídos da noite tropical vinham juntar-se a essa sensação de repugnância e em pesadelos horríveis via-se coberto de toda esse exército de rastejantes imundos. Acordava cansado e encharcado pela transpiração. Depois eram horas intermináveis à espera da claridade da manhã para debaixo do chuveiro acalmar os nervos e a comichão que lhe roía o corpo. O peito coberto de pontos vermelhos e os braços zebrados de sulcos que a dormir fazia com as unhas, aumentavam ainda mais aquele sentimento angustiante e indefinível.
Mais dois dias que teria de esperar até que o primo – que ele não conhecia – o viesse buscar para seguirem então para o lugar onde iria trabalhar.
Sentia necessidade de falar com alguém, de trocar impressões, de fazer perguntas.
V rias vezes tentou meter conversa com outros hóspedes, mas ao ver o desprezo com que o olhavam, acabara sempre por desistir.
Seria impressão sua?..
A primeira pessoa com quem tentou entabular conversa, foi com um homem gordo que não parava de fumar acendendo cigarros uns aos outros. De vez em quando o fumador fazia uma pausa. Acabava a tosse e recomeçava o trabalho interrompido.
Quando lhe perguntou se por ali perto havia seringueiras, o homem olhara-o sem compreender.
-Seringueiras? O que é isso?...
-As árvores donde se extrai a borracha... – respondera.
Houve risinhos nas mesas do lado e por fim o Matos -assim se chamava o fumador – pusera-lhe a mão„o no ombro e piscando o olho aos presentes:
-Oh! Rapazinho, aqui essa tal árvore não se chama assim. Aqui chama-se borracheira. Bo-rra-chei-ra...Ouviu? Deixe lá esses nomes do Mputu, porque caso contrário todos se vão rir de si...
E riram a bom rir.
Depois fizera ainda outra tentativa...
Fora na véspera: quando chegou à sala para tomar o café as mesas estavam já todas ocupadas e ele tivera de sentar-se, numa em que já se encontrava um senhor todo vestido de branco.
Saudara, pedira licença e sentou-se. O criado indígena serviu o café e Eduardo comentou:
-Afinal os negros não são tão selvagens como me diziam lá ...
-Bem se vê que o "menino " acaba de chegar. Se pensa mesmo o que diz, seria melhor ter ficado na sua terrinha e dar de vez em quando umas esmolinhas para os pretinhos das Missões...Sempre aparece por cá cada um!...
Apesar do açúcar que tinha posto na chávena, Eduardo sentira um gosto amargo na boca. Levantou-se e deixou o senhor de branco a comentar o caso com os hóspedes da mesa do lado.
Daí por diante, jurou nunca mais entabular conversa fosse com quem fosse. Esperaria pelo primo e então poderia falar à vontade sem temer ser ridicularizado.
(I I)

Eduardo saiu debaixo do chuveiro e procurou na mala um frasco de álcool. Esfregou o corpo dorido, vestiu-se e resolveu sair. O Sol escaldava já .
O Hotel situava-se à beira da estrada e à passagem dos carros, uma nuvem de pó vermelho, impregnava tudo e todos.
Eduardo seguiu pela avenida ladeada de coqueiros e palmeiras, cruzando-se com os indígenas que se dirigiam para o trabalho. Não compreendia a língua que falavam, mas pelos olhares que lhe dirigiam e pelos gestos que faziam, percebia que falavam dele.
Um grupo de soldados nativos comandados por um oficial branco aproximava-se e ele parou. Parou a admirar a farda que lhe fez lembrar os soldados do Museu do Bussaco!
Um...dois...um dois...
A tropa é igual em todo o Mundo. Sobretudo no que diz respeito aos soldados, que apenas obedecem. Os soldados são números. Também ele já o fora...
Um...dois...um...dois...esquerda, direita...
A princípio custara a habituar-se. Depois fazia como os outros. Por obrigação por imposição, ou por tradição, nunca tentou aprofundar a questão. As mulheres pariam e eles tinham a tropa, como diziam lá na terra...
Olhando para o Céu pardacento tentando localizar o avião pelo barulho dos motores, sentiu picadas nos olhos. Esquecera-se dos óculos escuros no quarto e a reverberação do Sol fazia-o chorar.
Estugou o passo. Estava perto do aeródromo e queria assistir à chegada.
Oito dias antes, à mesma hora ele chegava. Momentos antes de o avião tocar a terra, tivera medo. Tivera a impressão o que o velho DC3 roçava na copa das árvores e que iria cair no rio...Mas tinha durado pouco esse momento -um ligeiro estremeção e uma nuvem de poeira vermelha, avisava-o de que tinham aterrado...
O mesmo cenário de hoje: muita gente, muita algazarra. Negros, brancos, mestiços, riam, falavam, discutiam, enquanto, pachorrento, o avião viera imobilizar-se junto à casa térrea, coberta de zinco que servia de aerogare.
E enquanto a nuvem vermelha envolvia ainda a pista de terra batida, os passageiros começavam a descer, ao mesmo tempo que do bojo do aparelho saíam caixas de produtos víveres à mistura com sacos do correio.
Eduardo assistia a um dos acontecimentos mais importantes da pequena vila.
Situada no interior do País, envolvida por densa floresta tropical, era o avião que trazia aos seus habitantes, especialmente aos brancos, todos os oito dias, um pouco das suas terras distantes. Não só as noticias como também víveres frescos, eram esperados com ansiedade todas as quintas-feiras. Por isso, todos aqueles a quem os seus afazeres permitiam, se reuniam nesse dia no aeródromo.
Os indígenas compartilhavam também essa euforia, uns atraídos pelo espectáculo sempre novo para eles, outros obrigados pelo desempenho das suas funções.
Havia também aqueles que chegavam e os que partiam. Os primeiros, esperançados numa vida melhor, mas de olhar triste a denunciarem as saudades mal contidas da terra que deixaram. Os que partiam levavam estampado no rosto, numa amálgama de saudade e orgulho, uma expressão de vitória e bem-estar.
Camionetas já carregadas de caixas, dirigiam-se ao centro da Vila e a multidão começava a dispersar, enquanto o avião desaparecia lá ao longe. Ao fundo da pista a coluna de fumo que servira ao piloto para saber a direcção do vento, morria em espirais hesitantes...

I I I

Deitou-se depois do almoço e embrutecido pela comida que ingerira e pelo calor, adormeceu. Mas pouco depois acordara com a sensação de que alguém batera à porta. E se fosse ela?... Adormeceu de novo e foi um sono agitado e cheio de pesadelos. Acordou obcecado pelo desejo insatisfeito, que lhe enchia a cabeça de cenas eróticas e que lhe exacerbavam ainda mais os sentidos. E assim passou horas...Depois, não podendo resistir mais, dera-se o inevitável. E então, como uma criança apanhada em falta, sentiu-se corar, mas uma sensação de alívio físico, compensava-lhe a culpabilidade que sentira. E dormiu, dormiu...
Uma tosse intermitente e pegajosa acordou-o. O Sol entrava pela janela de que ele fechara apenas as portadas de rede. Olhou o relógio. Seis da manhã! Parecia impossível que tivesse dormido tantas horas seguidas.
E a tosse recomeçou, como uivos de animal ferido. Uísque, cigarros, hospital...Era ele. Era o velho... E de novo os pensamentos da véspera começaram a querer germinar no seu cérebro, espicaçados pela juventude e pelo clima.
Levantou-se, deixou correr a água do chuveiro pelo corpo gorduroso da transpiração e sentiu-se mais calmo. Vestiu-se e dirigiu-se à sala…
- Bom dia Sr. Edmundo! Espero que não tenha estado doente. Como ontem não veio jantar... A tosse de meu marido incomodou-o?
- Adormeci, D.Maria. Não, não ouvi a tosse de seu marido...
E ali estava ele de novo, sem saber o que dizer, como que hipnotizado, olhando aqueles seios que ameaçavam rebentar a blusa de renda.
- Não se esqueça do quinino. É preciso tomá -lo com regularidade. Se o não tiver, é pedir ao criado. E cautela também com o Sol.
A princípio é preciso ter cuidado. Está tão vermelho! Não terá febre?
- Febre? Penso que...
Não acabou a frase. D. Maria corria para o quarto donde tinha vindo um ruído como o de um corpo que cai.
- Lá morreu o velho! - Pensou para consigo. Olhou para o lado e só então viu um homem sentado numa mesa que lhe sorria mostrando uns dentes negros de tabaco. Mal sucedido que fora sempre que tentara meter conversa com estranhos, Edmundo esboçou um sorriso tímido e começou a mexer o açúcar que se empastara no fundo da chávena.
- Chegou há pouco da metrópole, não?...perguntou o desconhecido.
- Há oito dias, respondeu a medo.
- Como eu o lamento por ter vindo para tais terras!...Quando veio tinha também mais ou menos a sua idade. Vim para arranjar uns tostões e ir-me embora. Trazia a cabeça cheia de projectos e a alma cheia de esperanças. Depois a pouco e pouco comecei a sentir uma transformação dentro de mim... E comecei a mudar. Como as cobras que mudam de pele... A vida no mato, o isolamento, o clima...tudo!
O homem calou-se e Edmundo que virara a cadeira para lhe fazer frente, viu a comoção transfigurar-lhe o rosto.
-É verdade, meu amigo. Como as cobras eu também mudei de pele. Os projectos e a esperança que trazia, foram-se com ela. Há quarenta anos que vim e não mais voltei. Nem volto. Na minha idade...Olhe aí o Pereira! Está arrumado. Os médicos bem lhe dizem para deixar o tabaco e o álcool. É as deixas!... E talvez tenha razão...
- Senhor Costa, depressa, vá chamar o médico. Meu marido caiu e perdeu os sentidos. Não consigo reanimá -lo.
Edmundo levantou-se, quis oferecer os seus préstimos, mas já D. Maria tinha desaparecido. Veio até à porta e viu uma camioneta que desaparecia na curva da estrada em direcção ao Hospital.

I V
Acendeu um cigarro e deixou-se ficar a contemplar o movimento da rua.
As lojas começavam a abrir e os indígenas em grupo entravam e saíam com o ar despreocupado que os caracteriza. Um toque de clarim e lá ao longe por entre o arvoredo, uma bandeira subia preguiçosas mente para o topo do mastro. O silvo estridente duma sirene, anunciava a partida de um barco, lá em baixo no rio. Duas freiras passavam de bicicleta, conversando alegremente...
Envolta numa nuvem de poeira, a camioneta imobilizou-se em frente … porta do Hotel. Um homem com uma pequena maleta desceu e numa saudação apressada à intenção de Edmundo, desapareceu no corredor sombrio.
O Costa tentava com um pau conservar levantadas as latas que cobriam o motor, de onde saia uma nuvem de fumo branco...
- Este estafermo, está como eu: ao mais pequeno esforço, põe-se a ferver por todos os lados. Quem andou não está para andar, é bem verdade. Bebe água que nem um camelo. Precisava de uma reparação, mas como o trabalho não é muito, lá se vai aguentando...
Eu moro aqui a uns vinte quilómetros e quando venho até à vila, vejo-me obrigado a parar várias vezes para lhe matar a sede. O que vale ‚ que neste País há água por todos os lados...
- Vive só?
- Quase. Ou melhor: vivo com o outro, mas só de vez em quando.
- Não compreendo...
- Não admira. É difícil na sua idade compreender certas coisas. Vivo só com o homem que sou agora. Mas de quando em vez, o homem que fui outrora vem fazer-me companhia...
É a tal história das cobras que mudam de pele e deixam bocados agarrados as pedras por onde passam. Apareça um dia destes lá pelo meu acampamento. Quase sempre há amigos que me visitam depois do trabalho, por volta das cinco. É o passeio dos tristes. Bebem-se uns uísques, conversa-se um pouco, enfim, muda-se de ambiente...
Ou fingimos mudar. Como diz o Vanderbilt, com o seu inimitável sotaque: C'est la vie!
O médico saia acompanhado de D. Maria.
- Então, Doutor, como vai o doente?
Foi D. Maria quem respondeu:
- Um pouco melhor, Sr. Costa, obrigada.
E o médico em reforço:
- Ainda não é desta que ele vai ver o S. Pedro. Velha cepa, Costa, velha cepa...Se todos fossem da têmpera dele havia poucas viúvas.
E todos riram menos Edmundo.
E então, depois de o ouvir em silêncio o Costa falou:
-Não tenho filhos e sem querer usurpar o lugar de seu Pai, tomarei conta de si até que a sua vida tome o rumo que as suas palavras mostraram que queria dar-lhe.
Os meus sessenta e sete anos, se não me trouxeram dinheiro, deram-me em compensação uma grande experiência da vida e um conhecimento bastante grande dos homens. Leio muito. Observo as pessoas e tento descobrir o que vai lá por dentro. É raro enganar-me. Criticam-me por nunca mais ter voltado a Portugal. Chamam-me até, como há-de ter ocasião de ouvir, filósofo!
Porém eu tenho as minhas razões que mais tarde conhecerá e que com certeza me vai dar razão. Por agora quero apenas que saiba que estou a seu lado. E nada de desânimos. Amanhã depois do funeral de seu primo, teremos ainda tempo de ver umas coisas na Administração e depois iremos até Bokala, para ver como as coisas se hão-de resolver.
Em qualquer dos casos falarei já amanhã com o Alvernaz e com certeza você terá na casa dele um emprego... e na minha um amigo às suas ordens.
V
O cemitério!... Será mesmo?... Uma faixa de terra delimitada por um pequeno muro, varias cruzes, algumas invisíveis no meio de altas ervas, aqui e além uma lápide partida com um nome ilegível, era o cenário que se deparava às pessoas que tinham ido acompanhar o António dos Santos à sua última morada.
Não se viam lágrimas, mas o Sol escaldante fazia brotar dos rostos tisnados, grossas gotas de água que se transformavam em manchas húmidas, nas camisas brancas dos homens.
Eduardo sentia a camisa colada ao corpo e arrependia-se de não ter aceitado os conselhos do Costa, que o aconselhara a não trazer o casaco Mas achara que era uma falta de respeito para com o morto e afinal estavam todos em mangas de camisa e sem gravata. E agora não só o calor, como também os olhares curiosos dos circunstantes lhe davam uma sensação de náusea e de desgosto. As gentes, os costumes, tudo era diferente...
- Como as cobras que mudam de pele – dissera-lhe o Costa.
Um camião passou na estrada ao lado e o padre interrompeu a oração fúnebre, aproveitando para limpar o rosto. Uma nuvem de poeira vermelha pairava no ar e ia descendo lentamente envolvendo-os a todos.
- Memento homo... – dizia o padre.
O Costa tocou-lhe no braço e ele lá foi lançar um punhado de terra no buraco rectangular. Outros se lhe seguiram e por fim a pá fez o resto.
Ao acordar, a primeira impressão que teve, foi a de que um incêndio lavrava a poucos metros do quarto.
Levantou-se apavorado, afastou as cortinas das janelas e o clarão vermelho do Sol que nascia, dissipou o temor que sentira.
Espectáculo deslumbrante!
Da terra que ele começava a aquecer, erguia-se uma nuvem branca que ao subir roçava pelas folhas dos cafezeiros ainda adormecidos, numa carícia húmida e criadora.
E o disco vermelho rompia hesitante por entre nuvens de cores variadas, desenhando figuras fantasmagóricas a que os olhos ensonados de Eduardo davam vida.
Numa explosão de cores, o horizonte ardia. Um fogo vivificante envolvia a Natureza, acordando-a.
A chaminé dum barco fundeado no rio começou a vomitar fumo negro. E em espirais majestosas ele subia no azul do céu, misturando-se depois com a neblina da manhã. O dia despertava com bocejos cacofónicos. E lá ao longe, o Sol continuava a subir, despindo a pouco e pouco os farrapos de nuvens que o envolviam.
Eduardo sentia a cabeça vazia e a boca seca. Deitara-se tarde. Fumara muito e bebera ainda mais. Os acontecimentos da véspera passavam-lhe pela mente como lembranças dum sonho que se quer esquecer.
O carro abraçado à árvore, aquele bocado de relva tingido de sangue e um corpo humano trucidado, embrulhado num cobertor...
E se tudo aquilo não passasse dum sonho? Mas não! Não tinha sido um simples sonho e ele ali estava só!
Só?... E o Costa? O Costa que sem quase o conhecer o trouxera, o acarinhara, o aconselhara e que até lhe dissera que lhe arranjava emprego?...Como um Pai. Um Pai?... Mais do que isso... Se o seu verdadeiro pai até o tinha escorraçado...Como gostaria que o pai lhe tivesse dito palavras como aquelas que tinha ouvido na véspera!
Pouco falaram durante a viagem. Só nas paragens que tiveram de fazer para " dar de beber ao estafermo ", o silêncio fora quebrado.
Quando chegaram, o criado pusera mais um prato na mesa e ele comeu com apetite. E bebera também. Depois conversaram até altas horas da noite.
Eduardo contou as razões que o fizeram emigrar e durante horas o Costa escutou sem interrupção.
Pela primeira vez na vida, como num desabafo, ele confiou a alguém o que durante anos guardara como um segredo dentro de si. E pela primeira vez sentiu um bem-estar íntimo que nunca experimentara – a certeza de que alguém o compreendia...
Segunda-feira, Setembro 06, 2010
VI
Uma multidão de indígenas com as caras sujas de lama e quase nus, dançavam e gritavam à volta duma mulher que se rebolava no chão como endemoninhada
Quatro homens com os rostos zebrados de tinta azul e branca, um tufo de ervas secas a tentar esconder-lhes o sexo, batiam freneticamente em tantãs fazendo-se acompanhar por dois petizes que faziam tinir duas garrafas com o auxílio de duas colheres.
O som lúgubre do conjunto juntava-se aos gritos estridentes da multidão que em contorções grotescas mas cadenciadas, exprimia assim o seu pesar.
Um velho esquelético e desdentado empunhando uma espécie de trombeta feita do chifre de um veado, avançou por entre aquela gente ululante dirigindo-se ao centro do círculo.
Parou, levou o instrumento à boca e soprou: o som saiu com toda a nudez da sua origem e um silêncio eivado de ruídos sinistros envolveu a cena.
Os indígenas que rodeavam a mulher afastaram-se e ela levantou-se e de mãos estendidas, dirigiu-se a Eduardo...
O Costa que assistia impassível ao desenrolar dos acontecimentos apercebeu-se da sua ligeira hesitação e falou:
-Não tenha receio. Ela considera-o como fazendo parte da família e você tem de se portar como tal. Ela vivia há muito com seu primo. E uma boa mulher...
O seu primo teve uma boa situação. Nessa altura não lhe faltavam as mulheres brancas. Mas foram-se com o dinheiro. E depois esta apareceu e ficou. Mesmo sem dinheiro!
O carro ainda o não tinha pago completamente. Foi o seu canto de cisne!...
-Então e como pensa que se vão resolver as coisas?
-Não há nada a resolver pelo nosso lado. A administração se encarregara disso. A esta hora já os credores devem vir a caminho. São os amigos de outrora – os abutres. Aqui nesta terra o pior inimigo do homem depois do mosquito, é o próprio homem.
E os amigos de outrora vieram e levaram tudo. Menos a preta porque era velha...

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